Parecia que eu queria muito. E por parecer que estava contando os segundos para entrar naquele lugar, não me dei conta, logo de cara, em tantos detalhes. Detalhes que só mais tarde consegui recuperar.
Era um lugar bonito, com um ar calmo, mas feliz ao mesmo tempo, bastante iluminado. Sabe aquele lugar que parece que tem um sol dentro? Era assim. Tinha bastante movimento em volta, pessoas na fila para entrar, mesinhas do lado ocupadas com conversas e xícaras de café. Acho que tinha até uma musiquinha de fundo, na verdade, não lembro, mas acredito que caberia perfeitamente uma musiquinha de fundo. E eu ali na fila.
Como já falei, parecia que eu queria muito entrar nesse lugar, mas passado um tempo, fiquei pensando se essa vontade era tão definitiva assim. A fila foi encurtando, eu chegando mais perto da entrada e aquela certeza começou a titubear. Quando chegou a minha vez, a recepcionista com uma voz doce perguntou:
– Você gostaria de entrar?
E o que escuto é minha voz sair suavemente: “... talvez".
E logo que terminei de falar essa palavra, eu acordei. Era um sonho e saí dele com uma pequena palavra, que passou a me acompanhar como se tivesse gravada no meu corpo, como uma tatuagem.
O que tudo isso significava? Era um talvez sim? Ou um talvez não? Ou um tanto faz?
Talvez sozinho quer dizer o quê?
Recortes
(nesta seção sempre trarei alguns recortes que cruzaram o meu caminho ao longo do mês e que me ajudaram na costura final da newsletter )
O Céu da Língua - Gregorio Duvivier
Assisti essa peça duas vezes de tanto que amei! Vale ficar de olho no perfil @ceudalingua para saber por onde ela vai passar. É uma peça sobre a língua portuguesa, eu diria, uma carta de amor ao português, com muita graça envolvida. Pensar que como todos estamos imersos na nossa língua, na maioria das vezes nem nos damos conta de como ela nos constitui. Eu ri muito e me emocionei profundamente. E, talvez, olharmos para a nossa bagunça poderia sim dar outro rumo para quem somos:
“Então, vocês já ouviram falar que os esquimós tem 50 palavras pra neve? Então, é mentira. Parece que eles tem só oito. Já é muito. Uma neve escorrendo, outra derretendo, outra pra neve fofa, e eu não consigo nem imaginar por que é que precisa de mais, A gente tem uma palavra só, E já está sobrando. A gente tem 37 palavras pra bagunça. É a nossa neve.
(...)
Quando eu digo que bagunça é a nossa neve: também é no sentido de que a gente aprendeu a viver dentro dela. E mais: nossas melhores coisas são graças a ela. Tudo que criamos de bonito enquanto civilização foi graças à gandaia. Toda tentativa de moralizar o galinheiro deu errado: aqui a ordem só levou ao retrocesso. Já o progresso nós só alcançamos na fuzarca. Pra gente não existe diferença entre o balé e a bagunça. O Brasil só toma jeito no dia em que desistir de tomar jeito e investir pesado na indústria do escarcéu para exportar pro resto do mundo nossa tecnologia do furdunço. E assim, um dia, quem sabe, nossas instituições estarão à altura do nosso carnaval.”
O coração do dano - María Negroni
Tenho gostado tanto de ler as argentinas. Meu livro preferido do ano passado também foi escrito por uma argentina - Betina González. Esse livro é uma experiência forte para todo mundo que algum dia já se perguntou sobre o seu primeiro lugar no mundo - sua mãe. Sim, essa pessoa que não só nos concebeu, como nos carregou e continua presente, mesmo que ausente, no corpo. Aqui María nos mostra que talvez não há muito como fugir.
“ADVERTÊNCIA
A literatura é a prova de que a vida não basta, disse Fernando Pessoa.
Pode ser.
O mais provável é que a vida e a literatura, sendo ambas insuficientes, iluminem às vezes – como uma lanterna mágica – a textura e a espessura das coisas, a complexidade assombrada que somos.
Foi o que eu busquei, Mãe.
Te dar, como no Apocalipse, um livro de comer.
Um pequeno livro, do meu punho e corpo, certamente errado em sua tristeza, que fosse fielmente um censo de cenas ilegíveis.
Algo assim como um compêndio abstrato em que eu mesma pudesse entrar, o menos tímida do mundo, para perguntar a ninguém o que fazer.
Pensei que talvez, nas bifurcações do caminho, lembrar pudesse equivaler a unir (e a perdoar).
Então valeria a pena.
Pelos meandros das páginas, eu poderia olhar as coisas que nem sequer acabam, sem cair e me assustar, sem renunciar de todo à intuição.
Não sei se consegui morder o que eu buscava.
Não sei, o que é pior, se era imperioso iluminar cada canto do medo.
Não disse Emmanuel Hocquard que o que importa, em todo artista, é um problema gramatical, não um problema de memória?
Resta-me o consolo de ter deixado coisas sem esclarecer, algo que frutifique no futuro como essas profecias que demoram anos em ser atingidas.
Nesse futuro, que pode estar no passado, aposto tudo.
Não existe mais fidelidade aos fatos do que errar o rumo ou divagar.”
O colibri - Sandro Veronesi
Achei esse livro bastante engenhoso, principalmente na questão do formato, como se o formato nos levasse a encontrar uma maneira mais ativa de espiar a história. Me vi caçando palavras, montando tempos e colando sentidos ao longo do livro. Os títulos dos capítulos foram confeccionados com um nome e um ano. O nome você quase sempre encontrará no corpo do texto, quase como uma caça às palavras. Já os anos serão apresentados de forma completamente aleatória - começa em 1999, pula para 1981 e avança para 2008. Como se em cada capítulo você acessasse uma parte da história e cabe a você montá-la. O uso que o autor também faz dos formatos de comunicação entre os personagens - cartas, e-mails e mensagens - acaba modulando as distâncias, os encontros, aquilo que eles precisam falar, os silêncios e ausências. O livro narra a história de quatro gerações da família Carrera, do ponto de vista de Marco, médico, filho do casal Letizia e Probo, irmão de Irene e Giacomo, pai de Adele e avô de Miraijin. E, talvez, esse livro nos ajude a perceber que na vida miúda, na história cotidiana de um homem bem comum, pode sim caber toda a imensidão do que é existir.
“(...) Talvez até tivessem razão, mas o preço que Marco Carrera estava destinado a pagar por aqueles danos sempre o faria sentir-se no direito de pensar a questão da seguinte maneira: a psicanálise era como o cigarro, não bastava não fazer uso dela, também era preciso proteger-se de quem dela fazia uso. Só que a única maneira conhecida de se proteger da psicanálise alheia era ir, por sua vez, à análise, e ele não pretendia ceder a esse respeito.
De resto, não havia necessidade de um analista para fazer as perguntas certas: por que cargas d’água, com tanta mulher no mundo que não ia ao analista, ele se relacionava apenas com aquelas que iam? E por que preferia expor a elas, que o chamavam de superficial, sua teoria sobre a psicanálise passiva, e não às mencionadas mulheres não praticantes, junto às quais obteria um sucesso previsível?”
Alinhavos
(aqui destacarei sempre a referência, ideia ou sentimento que se tornaram o fio condutor da costura)
A palavra talvez, assim sozinha, sem complemento, quer dizer o quê? Sem um talvez sim ou talvez não, que nos localize na nossa indecisão diária. Ou, talvez seja saudade ou talvez apenas costume, diante de uma perda ou um hábito. Um talvez agora, que nos acompanha diante daquela resposta que tanto esperamos. E que se for positiva, festa e alegria, caso contrário, nos obriga a deslizar imediatamente para um talvez depois para ainda nos mantermos em pé. O que pode um talvez sozinho?
Costura
(aqui acontece a minha costura final do mês, mas isso não quer dizer a verdade final. Então, a partir da sua leitura, podemos transformar essa costura final em um ponto e com o seu ponto, continuar a costurar o tema. Fique à vontade para participar, é só me escrever)
E talvez, me desapegar dos complementos e pensar nessa palavra sozinha me levou para uma elaboração do sentido que dou ao caminho. Esse que sempre pode se abrir, mesmo quando insistimos em fechá-lo, daquilo que não controlamos, mas podemos desejar, do pulo no abismo, mesmo sem saber o que vem depois da queda.
Talvez virou uma palavra-concreto nesse último mês, mesmo que essa invenção não faça muito sentido à primeira vista. Se é talvez, “indica possibilidade, mas não certeza” e se é concreto, “o que é real, existente, verdadeiro”. Ambos se anulariam, mas nessa digressão elas se casam e produzem um momento concreto de respiro, de reflexão quando falo: talvez. Sozinha a palavra produz em mim de forma bastante concreta um tempo suspenso, tempo esse anterior à escolha, segundos que antecedem o passo, aquele milésimo de segundo que preexiste ao gesto.
Pensava nessa elaboração da palavra talvez sozinha e vinha na minha lembrança o filme “Vidas Passadas". Imaginei que a associação devia ser por essa relação do passado que volta para se apresentar ao presente. E fui assistir novamente para me deparar com uma cena final inteira construída com a palavra talvez. É pura associação livre, aquela coisa de “isso me lembra…", uma das ferramentas mais poderosas para criar.
Esse filme tem tantas camadas que poderia ficar escrevendo sobre ele por vários meses, mas hoje vou recortá-lo para a minha reflexão a respeito do talvez sozinha como palavra-concreto. Então, de forma bastante leviana a história do filme é a seguinte: (assistam, vale muito a pena. Li em uma crítica que o filme seria um daqueles em que nada acontece. E justamente é por isso que amo os filmes com essa classificação, porque nada acontece para acontecer tanto internamente no personagem que nós só podemos ficar imaginando. Enfim, amo filmes em que nada acontece, rsrsrs)
Aos 12 anos Nora vai embora da Coréia do Sul e deixa para trás Hae, seu melhor-amigo-possível-primeiro-amor de 12 anos também. Ela imigra para o Canadá com os pais e depois de 12 anos vai para Nova Iorque, onde a história se desenrola. O filme todo acontece com cortes de 12 anos, então, aos 24 anos eles se reencontram pela internet e mantém um semi-namoro virtual que não sobrevive à distância. Aos 32 anos, Hae vai de férias para Nova Iorque e eles se encontram de novo, agora presencialmente. Mas, Nora nessa altura da vida está casada. O personagem do marido americano é bem interessante, como aquele que testemunha a história da infância da sua esposa, ao mesmo tempo em que não pode ignorar a história dela para além dele. Enfim, assistam e vamos conversar!
Vou destacar duas cenas da Nora do filme, a primeira com seu marido, Arthur, e a segunda com o Hae, para pensar nesse momento concreto que o talvez produz e como podemos vivenciar essa palavra-concreto.
1) Nora e Arthur estão na cama antes de dormir, conversando sobre esse reencontro de Nora com Hae, e Arthur fala:
Arthur: – “Você sonha numa língua que eu não entendo. Parece que há um lugar dentro de você onde não sou bem-vindo. Acho que por isso estou tentando aprender coreano, e eu sei que isso irrita você.”
Nora: – Quer entender o que falo sonhando?
Arthur: – Quero
Nora: – Aposto que só falo besteira.
Talvez, se souber coreano ele pode imaginar que…
2) Arthur, Nora e Hae estão em um bar no dia da despedida de Hae. Em um momento Nora e Hae começam a conversar em coreano e acabam excluindo Arthur:
Hae: – Quem acha que éramos nas vidas passadas?
Nora: – Não sei
Hae: – Talvez um casal impossível? Uma rainha e o fiel escudeiro do rei?
Nora: – Ou talvez… obrigados a conviver num casamento de fachada… e sendo horríveis um com o outro.
Hae: – Uma traição atrás da outra.
Nora: – Cruéis um com o outro.
Hae: – Talvez sentados um ao lado do outro dentro de um trem.
Nora: – Por quê?
Hae: – Por causa dos números nos bilhetes.
Nora: – Talvez… apenas um pássaro e o galho onde ele se empoleirava toda manhã.
Quando a imaginação tenta dar conta daquilo que não conseguimos viver (até porque temos uma única vida), o talvez vem para criar cenas, desvios, personagens e encontros possíveis, mesmo que seja para falar do passado, da vida que não aconteceu.
Convite
Ainda dá tempo, quero convidar você para o Clube de Leitura da Como Leio do livro “Outra Pele - como fui parar em Moçambique e nada saiu como o planejado”, com a presença da autora, Caroline D’essen. Será dia 04/06 às 18:30, de forma virtual. Basta de inscrever de forma gratuita aqui e pode convidar quem você acha que vai gostar do encontro!