Um deserto. Cinco dias.
Seria isso: uma viagem de cinco dias para um deserto durante o carnaval. E não seria qualquer deserto, mas o deserto mais árido do mundo. E foi assim o começo da história que iria me acompanhar pelo mês inteiro de fevereiro. O carnaval no vazio.
Mas afinal, o que sei sobre um deserto?
Lembrei de uma passagem de um texto em que a escritora Marina Colasanti reflete sobre o que seria da sua compreensão do que é uma ilha se não tivesse lido os livros que leu durante a vida (Ilha do Tesouro, Ilha Misteriosa e a de Robinson Crusoe). Com eles a paisagem passou a não ser apenas geográfica, mas subjetiva, uma possibilidade de aprender sobre sobreviver e estar só:
“E como fica meu imaginário se uma ilha for somente um pedaço de terra cercado de água por todos os lados, se uma ilha for acidente geográfico e não símbolo?”
Transportando para a minha história aqui, o ponto de partida foi: como ficaria o meu imaginário se o deserto fosse só um monte de areia? Ou um lugar em que não se tem nada?
E o que seria de um carnaval sem metáforas?
Recortes de janeiro
(nesta seção sempre trarei alguns recortes que cruzaram o meu caminho ao longo do mês e que me ajudaram na costura final da newsletter - os grifos feitos nas citações abaixo foram escolhas minhas)
No teu deserto - Miguel Sousa Tavares
Li esse livro pela primeira vez no início de 2022 e quando decidi passar o carnaval no deserto, foi o primeiro pensamento que me tomou - voltar para esse livro. Ele narra a travessia de um jornalista e de uma jovem pelo deserto do Saara. A primeira vista, o deserto é o cenário, o lugar em que a história vai acontecer, mas depois de algumas páginas você percebe que não é apenas um espaço geográfico, mas também a formação de uma paisagem subjetiva dos personagens para que eles possam existir.
“Esta história que vou contar passou-se há vinte anos. Passou-se comigo há vinte anos e muitas vezes pensei nela, sem nunca a contar a ninguém, guardando-a para mim, para nós, que a vivemos. Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fina camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes.”
“Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos—e esse é assustador. Será assim a morte, também, Cláudia? Quando um de nós ficava parado a contemplar o deserto, o outro não deveria dizer nada. Tudo o que se pudesse dizer, naquelas alturas, ali, em frente ao nada ou ao absoluto, seria tão inútil que só poderia vir de uma alma fútil. Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio."
Crise da narração - Byung-Chul Han
Conheci esse autor pelo livro “Sociedade do Cansaço”, leitura que causou barulho revelando como andamos todos exaustos diante da própria existência e com tão pouca consciência de como nos movimentamos. Com esse outro livro, o autor volta a nos alertar, mas dessa vez sobre a máxima atual, o tão famoso storytelling e o poder das narrativas. Mas, será mesmo que estamos nos envolvendo em uma narração do ser? Ou apenas vagando e repetindo um apanhado de informações?
“As narrações criam uma comunidade. O storytelling, por sua vez, só cria uma community na forma de mercadoria. A community é formada por consumidores. Nenhum storytelling seria capaz de reacender a fogueira em torno da qual as pessoas se reúnem e narram histórias umas às outras. A fogueira já foi extinta faz tempo. Ela está sendo substituída pela tela digital que isola as pessoas na forma de consumidores. Consumidores são solitários. Não formam uma comunidade. Os “stories” das plataformas sociais não são capazes de eliminar o vácuo narrativo.”
“A recordação não é uma repetição mecânica do que foi vivenciado, mas uma narração que deve ser novamente narrada várias vezes. As recordações são necessariamente falhas. Elas pressupõem proximidade e distância. Se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação desaparece. Uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro. Quem quiser narrar ou recordar, precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa. A sociedade da transparência representa o fim da narração e da recordação. Nenhuma narração é transparente. Somente informações e dados são transparentes.”
By Heart - Tiago Rodrigues
Não tenho muito hábito de ler peças de teatro. Lembro de poucas peças em que me debrucei e sempre atreladas ao estudo da psicanálise. Mas, essa peça de Tiago Rodrigues foi uma imensa e doce surpresa. Escutei Gregório Duvivier falando sobre a importância de saber poemas de cor, de saber coisas decoradas e ele fez referência a essa peça. A minha experiência de leitura foi tão profunda com esse texto que saí procurando uma pessoa para quem eu pudesse ler em voz alta e talvez, me colocar no exercício de decorá-la um pouquinho.
A peça é construída como um exercício para que dez espectadores decorem um soneto de Shakespeare, mas especificamente o soneto 30. Mas, nesse exercício de decorar palavras, Tiago vai entrelaçando histórias, pensamentos, lembranças, sua avó - Cândida que pede para que ele a ajude a decorar um único poema, antes que a visão lhe falte - fragmentos do livro Fahrenheit 451 e o relato do professor de literatura George Steiner não só da sua relação com as palavras, mas da sua vivência nas palavras. Em meio a esse emaranhado, Tiago vai nos mostrando o que de fato fica em nós.
“Quando em meu mundo e doce pensamento
Chamo à lembrança das coisas que passaram,
Choro o que em vão busquei e me sustento
Gastando o tempo em penas que ficaram.
E afogo os olhos (pouco afins ao pranto)
Por amigos que a morte em treva esconde
E choro a dor de amar cerrada há tanto
E a visão que se foi e não responde.
E então me enlutam lutos já passados,
Me falam desventura e desventura,
Lamentos tristemente lamentados.
Pago o que já paguei e com usura.
Mas basta em ti pensar, amigo, e assim
Têm cura as perdas e as tristezas fim.”
(Soneto 30 de William Shakespeare)
“A maior homenagem que alguém pode fazer a um poema ou texto que ama é aprendê-lo de cor, by heart ou par coeur. Não by brain, apenas com a cabeça, mas de cor, de coração.”
“E no campo de concentração, ele dizia às pessoas: se precisares ler alguma coisa, vem lê-la em mim. Uma imagem magnífica. Eu tenho o livro em mim e podem consultá-lo. Não se preocupem por terem perdido todos os livros. Leiam-me.”
Alinhavos
(aqui destacarei sempre a referência, ideia ou sentimento que se tornaram o fio condutor da costura)
O que esperar de um lugar que é um espaço vazio? O deserto povoou o meu imaginário durante o mês inteiro, me fazendo divagar sobre estar andando em um lugar sem os contornos de uma cidade grande, sem ruas, prédios e casas, carros e barulhos. Me vi divagando em quem eu serei por lá. O que eu posso sentir com tanto horizonte ao redor? E ao mesmo tempo me fez refletir: o que encontrarei de mim no deserto? O que eu sei de cor quando tudo ao redor desaparece?
Costura
(aqui acontece a minha costura final do mês, mas isso não quer dizer a verdade final. Então, a partir da sua leitura, podemos transformar essa costura final em um ponto e com o seu ponto, continuar a costurar o tema. Fique à vontade para participar, é só me escrever)
Diante do nada, o que nos resta?
Diante de uma página em branco… de uma casa vazia… o que nos sustenta?
Talvez, a imagem do deserto tenha me habitado esse mês, e me feito pensar e sentir o que acontece quando a gente subtrai as infinitas coisas e barulhos ao redor. No primeiro momento essa imagem de ir para um lugar vazio, me desperta alívio, quase como um intervalo entre aulas, um respiro para poder apenas estar. Mas, quando me demoro mais nesse sentimento aliviado, percebo que tem mais coisas que a fantasia do deserto apura nos meus sentidos, e, a primeira é o olhar.
"- A terra pertence ao dono, mas a paisagem pertence a quem a sabe olhar.”
E quem sabe olhar? Adoro a frase do Miguel Sousa Tavares porque ela já deixa claro que o campo do olhar não é o da posse, da propriedade e sim, do pertencimento. Sendo assim, não há qualquer construção de olhar que não passe pelo envolvimento. Envolvimento com o que se é, com o que se quer ser, com experiências vividas, outras tantas imaginadas e com o que se observa e como se observa. Juntando tudo isso, talvez, sim a gente tenha uma paisagem para narrar.
Em 1955, Hannah Arendt foi convidada para dar um curso na Universidade da Califórnia, em Berkeley, chamado “Questões Contemporâneas". A proposta do curso era fazer os alunos construírem uma biografia de um personagem imaginário, nascido no fim do século XIX e interessado em eventos políticos do século XX. Mas, tinha um detalhe, esse personagem imaginário não poderia ser o protagonista de nenhum evento específico e tão pouco ativista político, ele deveria ser alguém comum, que simplesmente observava os acontecimentos. Seria portador de gestos, da vida miúda de fato e traria no olhar a história a ser narrada.
“No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio.”
A segunda pista encontrada em Miguel Sousa Tavares é quando ele chega no silêncio, ou melhor, quando ele aponta que o deserto invariavelmente vai impor um silêncio. Quando não há nada a se falar, o que permanece em nós? Uma sociedade que suporta cada vez menos o silêncio, traz no barulho um sintoma.
Na peça By Heart, Tiago nos conta a história da sua avó Cândida, que mora em “uma aldeia por trás das montanhas. Por trás da aldeia, um rio sinuoso e escuro. As montanhas cobertas de amendoeiras e vinhas. Também algumas oliveiras e laranjeiras. Imagine vinte casas. Imagine o silêncio.” E é nesse silêncio que Cândida vive seus últimos anos de vida, é ali que fecha seu negócio da vida inteira, ali que enluta seu marido, ali que vai perdendo a visão e que acaba por encerrar uma das relações mais próximas que teve na vida - com os livros. Diante do silêncio e do possível olhar vazio que a vida estava lhe anunciando, ela pede ajuda para decorar um poema, “um livro que fique guardado na sua memória. Um livro que possa ler mentalmente quando os olhos lhe falharem.”
E assim, diante do exercício de olhar, de imaginar e de silenciar, o que fica?
O que trago dentro de mim, independente do entorno?
O que me sustentará no vazio?
Carla, a riqueza do seu texto me levou para longe e me trouxe tantas reflexões. Obrigada querida. E talvez eu quisesse te perguntar: qual seria a composição desse nada? Que seus olhos encontrem o invisível! A natureza guarda surpresas. Estou animada por você! Beijos
Que bálsamo ler seu texto. Esse fio que nos conduz pra tantos pensamentos e emoções…
Logo me veio corpo como resposta para a pergunta sobre o que nos resta diante do nada. No silêncio, me veio o som do corpo, de quando estou no silêncio às vezes escuto o som das batidas do coração - que me causa algum tipo de medo, que deve ser não por bater, mas porque um dia não vai mais bater.
E sobre as narrativas, o olhar, me remeti ao Roland Barthes e a Susan Sontag quando falam sobre a fotografia no Camara Clara e Tudo Sobre Fotografia.
Quando fala da peça de Tiago e cita a descrição de onde vivia avó e percebi que era Portugal, e Tiago é um português. Fique muito curiosa de ler!
Já estou deserta de saber sobre essa sua experiência!
Ps: me dei conta agora da expressão que aprendi aqui: estar deserto por… que fala sobre o desejo, sobre estar animado, ansiando por algo.
😍😘