"Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias."
Encontrei essa frase do Eduardo Galeano no ano passado, quando estava preparando uma aula sobre repertório e desde de lá, ela tem me acompanhado ou eu a ela, não sei bem ao certo.
Mas não tenho dúvida que somos feitos de histórias, porque são elas que arquitetam a nossa existência. Quando olhamos para trás, para ver por onde já passamos, são as histórias que marcam esse caminho. São elas que me fazem não perder de vista quem já fui, mesmo que tenha tão pouco em mim daquela pessoa. As histórias passam a ser paisagens de quem fomos, de quem somos e de quem ainda queremos ser.
O que mais me intriga na frase é a “quase” oposição que ele criou: de um lado, temos cientistas no plural, um grupo sem individualidade, dizendo que somos feitos de átomos, o que para mim soa quase como uma mera informação. Enquanto do outro lado, eu tenho um só passarinho, um ser vivo que nos conta, e esse contar aqui parece mais perto de nos enredar na trama que são as nossas próprias histórias.
Mas a coisa mais importante dessa frase é Eduardo Galeano desenhar um corpo (um passarinho) contando algo. Confesso que em alguns momentos ficciono que esse passarinho quase sussurra para dividir o segredo de que “somos feitos de histórias”.
É no corpo que vivemos as nossas histórias e depois é ele que dá conta de tramar, de registrar e de lembrar. Um trabalho artesanal, feito à mão, que exige tempo para transformar a experiência em histórias, coragem para escolher as palavras para nomear e sensibilidade para escutar ativamente tudo aquilo que já foi, que é e que ainda será.
O corpo é o ponto de partida e de chegada, é o nosso aqui.
Recortes
(nesta seção sempre trarei alguns recortes que cruzaram o meu caminho ao longo do mês e que me ajudaram na costura final da newsletter )
Tudo que é belo - edição Catherine Burns
Esse livro me tomou por vários dias. Esperava ansiosa um intervalinho para voltar à leitura. São 45 histórias reais, então você pode imaginar quanto material imaginativo ele nos oferece. Inclusive indico para quem está com dificuldade de ler, pois se você ler uma história por dia, já garante 45 dias lendo de forma ininterrupta. Cada história é um relato rápido, com poucas páginas, nem dez minutos de leitura, mas que comporta toda a imensidão possível. E foi a base para um projeto que logo mais vou anunciar por aqui (ah, que vontade de contar, mas não posso, ainda, rsrs).
“Mas as histórias neste livro nos mostram que, quando ousamos enfrentar o desconhecido, geralmente descobrimos que temos mais coragem e tenacidade do que pensávamos. E não raro aportamos num lugar que sequer poderíamos ter imaginado quando nos pusemos em marcha. A qualidade suprema de todos os grandes contadores de histórias é sua disposição para ser vulnerável, para se denunciar na frente de milhares de pessoas. Cada história contada é um presente para os ouvintes.
Mas a plateia muitas vezes leva um presente seu. Vivemos num mundo em que testemunhar a história sem maquiagem de um estranho é um ato de tremenda compaixão. Escutar de coração e mente abertos e tentar compreender o que é ser como aquelas pessoas–por que pensam o que pensam, por que se vestem daquele jeito, por que fazem as escolhas que fazem–requerem uma coragem genuína.”
O ano em que morri em Nova York - Milly Lacombe
Li esse livro no ano passado e também foi um que comecei a ler e não consegui parar. O romance narra um casamento desfeito, essa é a história. Mas, o que mais gostei foi de como a autora transforma a separação em um pano de fundo, porque na verdade a separação só inicia uma série de outras histórias da personagem principal. Histórias essas que de fato definem a sua existência, pois ela começa a se reaver com a família, o trabalho, os amigos, seus medos e todos os conflitos que todos nós temos para no fim dizer: essa é a minha história.
“Parece que aprendemos as melhores coisas quando estamos de saída. Pouco mais de um mês se passou depois daquele telefonema e quase nada mudou em minha rotina, mas a verdade é que a transformação já tinha sido iniciada e eu ainda não sabia, porque não temos como saber quando um pequeno acontecimento desencadeia grandes mudanças até que elas atinjam você.”
(…)
“Engraçado como a vida muda tão profundamente sem avisar e sem que as pessoas que mais convivem com a gente saibam que já não somos mais os mesmos. Naquela noite, jantando com meus pais e minha irmã, fiquei pensando se alguém ali poderia ver como eu já não era a mesma pessoa do jantar da noite anterior. Mas eles não podiam. Só eu sabia que nada mais seria como antes.”
Caderno Proibido - Alba de Céspedes
Esse livro eu li em 2022 quando estava envolvida com uma pesquisa sobre a “Tetralogia Napolitana”, de Elena Ferrante. Em alguma entrevista, a autora indicou algumas autoras que a influenciavam, entre elas nossa Clarice Lispector e Alba de Céspedes, uma autora italiana. Esse romance se passa em Roma dos anos 50 e narra a vida de Valeria Cossati, uma mulher que se divide entre os papéis de mãe, esposa e funcionária de um escritório. Mas, essa seria apenas a história de fundo, pois o fato de Valeria comprar um caderno e começar a escrever um diário secreto abre uma série de outras histórias. E faz com que essa personagem experimente sua história em outra profundidade.
“Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos notáveis além do casamento e do nascimento das crianças. Mas desde que, por acaso, comecei a manter um diário, percebo que uma palavra, um tom, podem ser tão importantes, ou até mais, quanto os fatos que estamos habituados a considerar como tais. Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais recôndito da vida. Mas não sei se isso é um bem, temo que não.”
Alinhavos
(aqui destacarei sempre a referência, ideia ou sentimento que se tornaram o fio condutor da costura)
Estou às voltas de pensar em histórias, e refletindo sobre isso, pensando na minha trajetória, percebi que as histórias para mim sempre estiveram atreladas ao corpo. Olhar para o meu corpo é conseguir seguir as paisagens que me constituem. Lembro de quando dançava ballet - sim, em outra vida (história), já fui bailarina - e o corpo era quem contava a história. Você repetia, repetia e repetia, para que a narrativa encontrasse o movimento no corpo. Logo depois encontrei a leitura e ler para mim é uma das atividades mais corporais que existe, porque é meu corpo que cria as imagens, é no corpo que sinto essas histórias. Sem corpo não é possível ler. Na psicanálise clínica o corpo também estava ali para contar uma história, os nossos sintomas são as próprias histórias vivas. E, hoje sem trabalhar a escuta na clínica, nessa nova fase de psicanalista-pesquisadora-escritora, é no corpo também que vejo a pesquisa acontecer, é no corpo que a escrita se faz e posso avançar. Sim, é no corpo que a história está.
Costura
(aqui acontece a minha costura final do mês, mas isso não quer dizer a verdade final. Então, a partir da sua leitura, podemos transformar essa costura final em um ponto e com o seu ponto, continuar a costurar o tema. Fique à vontade para participar, é só me escrever)
Sei que pode parecer estranho quando falo que a pesquisa acontece no corpo, mas essas atividades de leitura e escrita estão entrelaçadas com a formação dos pensamentos e sentimentos. Demorei muito tempo para entender isso no corpo e fazer dele o suporte para que a questão se desenrolasse. Queria ter entendido isso durante o meu mestrado, que foi muito sofrido, pois não entendia que a pesquisa estava no meu corpo. Era tanta coisa para dar conta na minha vida prática na época, que hoje percebo que o mestrado ficou como pano de fundo, mas ali estava forjando algo mais importante.
Estava pesquisando a minha liberdade, o desejo de ir e vir sem pedir autorização, a potência de ter a vida feita pelas minhas mãos. Adoro o processo do meu mestrado, mas não gosto da pesquisa em si. E, tudo bem, o importante é que eu não parei, fui como consegui e hoje tenho encontrado a pesquisa nesse lugar do corpo. E tenho experimentado muita alegria com o processo, já que minha escrita hoje tem sido feita a partir de contentamento e não de aflição. O que não quer dizer que seja fácil, viu? Caçar palavras, formar parágrafos e criar sentido é um trabalho ardiloso, mas que hoje encaro com mais divertimento. Você que lê essa newsletter todo mês faz parte dessa mudança no meu corpo, e por isso agradeço imensamente a leitura.
Para esse mês eu escolhi escrever sobre histórias porque era o ponto de partida de um projeto que estou produzindo, então já estava imersa no tema e com a frase do passarinho na cabeça. Pronto, imaginei que a newsletter estava quase pronta. Nada disso. O caminho só estava começando e ao longo do mês o corpo foi se colocando em primeiro plano e apontando as associações para o texto que não imaginei escrever.
Sempre que pensava no texto me vinha à mente a autora canadense Anne Carson e essa autora não está na base da minha pesquisa para o projeto das histórias, então, confesso que comecei a ficar intrigada. Por que estou com ela na cabeça? De fato, nos últimos meses meu encontro com ela foi arrebatador. Tenho estudado sua obra e mesmo sendo bastante distante do que trabalho - ela trabalha os gregos antigos - tenho me interessado no formato que ela cria, a forma como ela junta referências, poemas, a forma como ela faz do texto uma composição e vai tecendo sentidos.
Ela não saia da minha cabeça, mas não conseguia entender bem como encaixaria ela no texto das histórias. Até que resolvi parar de resistir e peguei o livro dela que estou estudando. E quando abri, fui ver minhas anotações e me deparei com uma palavra em repetição: talvez. Sim, essa palavra de novo! Esse foi o tema da newsletter do mês passado. Será que continuo escrevendo, mesmo já tendo colocado ponto final? (deixo aqui o link, caso você não tenha lido)
Pois bem, deixo aqui dois trechos que encontrei esse mês com o talvez me mandando notícias novamente, agora nas palavras de Anne Carson.
“Vamos começar com a vida, a sua vida. Lá está ela diante de você – possivelmente uma estrada, uma fita, uma linha pontilhada, um mapa – digamos que você tem 25 anos, então você toma algumas decisões, faz coisas, tem contratempos, tem triunfos, se torna alguém, um motorista de ônibus, um professor, um pirata, os anos passam, talvez em uma família, talvez não, talvez feliz, talvez não, então um dia você acorda e tem setenta anos.” - “Coloque suas luvas”
“Será que eu posso
Se você não é o sujeito livre que gostaria de ser, então precisa encontrar um lugar para expressar essa verdade. Para contar como são as coisas para você. A candura é como um novelo produzido dia após dia no estômago; ele precisa se desenredar para fora dali. Talvez você possa sussurrar na boca de um poço. Talvez possa escrever uma carta e guardá-la numa gaveta. Talvez possa gravar uma maldição numa fita de chumbo e enterrá-la para que ninguém a leia por milhares de anos. O objetivo não é encontrar um leitor, mas contar o que tem para contar. Pense numa pessoa sozinha num quarto. A casa em silêncio. Ela olha para um pedaço de papel. Nada mais existe. Todas as suas veias levam a esse papel. A pessoa pega a caneta e deixa nele marcas que ninguém jamais verá, ela outorga ao papel uma espécie de excedente, e arremata com um gesto tão particular e preciso quanto o seu próprio nome.” - “Candura”
O que Anne Carson me aponta com essas repetições da palavra talvez? Finalizei o texto passado falando que: “sozinha a palavra produz em mim de forma bastante concreta um tempo suspenso, tempo esse anterior à escolha, segundos que antecedem o passo, aquele milésimo de segundo que preexiste ao gesto.” Mas, com o talvez nas palavras de Anne Carson, tenho vontade de pensar no talvez não apenas no tempo que antecede a escolha, como esse tempo que contempla a escolha e portanto, as histórias em si.
É como se o talvez aqui não significasse apenas as possibilidades de escolha, mas fosse mais a própria escolha. Talvez é o que a gente cria, aquilo que pode ganhar status de história. E se o talvez é a história, essa acontece no corpo, no nosso aqui e agora. E nesse momento percebi porque Anne Carson não me saia da cabeça, porque recentemente ela veio a público contar sobre seu corpo. Ela, uma ensaísta brilhante, escritora de textos potentes, tradutora dos poemas do grego antigo, recebeu um diagnóstico de Parkinson.
É seu corpo com uma condição nova que muda muito da sua caligrafia, da sua escrita à mão e que passa a comportar tremores. Ela relata em um ensaio surpreendente e emocionante a perda que vem experimentando da sua caligrafia. E para uma escritora, podemos imaginar o que isso pode significar.
“A caligrafia é uma marca de dentro de mim que coloco para fora, muitas vezes com o objetivo de mostrar, contar, comunicar.”
Achei bem bonito: “caligrafia é uma marca de dentro de mim que coloco para fora”, e quando o corpo passa a não conseguir mais transmitir o que há dentro? Ou quando o corpo passa a criar seus próprios tremores? É nesses momentos que precisamos lembrar que tremores também são histórias.