O que vem antes da página em branco?
Entre angústias e certezas, a ocupação acontece nos gestos.
Escrevi apenas para mim por muitos anos.
Era uma maneira de tentar colocar um pouco de ordem no que acontecia em volta, um espaço para tentar entender as coisas. Me deparar com a página em branco nunca foi uma dificuldade nessa época (pré-adolescência). Ao contrário, era uma certeza que sustentava muitas outras - ela sempre estaria ali, à distância de uma caneta.
Quando a escrita passou a fazer parte da vida adulta, das obrigações a serem cumpridas (mestrado), isso ganhou um lugar diferente. Um lugar bastante assustador e muitas vezes paralisante. A página em branco passou a despertar vários afetos negativos, a ser símbolo de tudo que faltava em mim. Passou de um lugar de investigação, de pensar e sentir para um lugar expiatório, em que o castigo era certo. E a página ficava quase sempre em branco por mais tempo do que precisava, como se eu não tivesse o que alinhavar.
Passou a ser um lugar muito mais sofrido do que interessante. Sabe quando a dose passa a ser mais veneno do que remédio? Tenho a sensação de que se não ficarmos atentas, chegamos na página em branco completamente esvaziadas de quem somos, do que experimentamos ao longo da vida e, mais ainda, do que desejamos.
Recortes
(nesta seção sempre trarei alguns recortes que cruzaram o meu caminho ao longo do mês e que me ajudaram na costura final da newsletter )
O livro das semelhanças - Ana Martins Marques
Revisitei esse livro esse mês porque uma amiga querida (Jana, obrigada! 💚) me emprestou um outro livro dessa autora. E a vontade de rever esse primeiro contato com a autora me tomou. Destaco a primeira parte do livro, em que os poemas são sobre a própria feitura de um livro, com sua capa, autoria, dedicatória, tradução, com todas as partes que compõem um livro.
Adoro o poema “Capa”:
“Um biombo
entre o mundo
e o livro.”
E, o “Título”:
“Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro.”
Outra Pele - Caroline D’Essen
“Outra Pele” é uma narrativa que nos leva a conhecer Caroline D’Essen, jornalista brasileira, em dois tempos. Em 2006 quando vivenciou a experiência de mudar de país, deixando para trás a vida que conhecia em São Paulo para estudar antropologia em Maputo, Moçambique. E a Caroline de 2025, que volta os seus olhos para essa experiência e encontra na escrita um continente a ser narrado, com tudo aquilo que foi visto, sentido e vivido.
Tive o privilégio de trabalhar nesse projeto como editora, acompanhando a Carol desde sua jornada com o processo de escrita até a publicação do livro, que chega às livrarias no fim de abril. Inclusive, ela vem produzindo um material muito interessante sobre toda essa jornada aqui no seu Instagram.
Adoraria te ver no lançamento, vou adorar dar um abraço pessoalmente e trocar figurinhas com quem puder participar.
Dia 22/04 às 18:30
Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915
The Ahthropologists - Aysegul Savas
Infelizmente esse livro não tem tradução para o português, mas para quem lê inglês é um livro muito criativo, delicado e com questões muito interessantes. Li em conjunto com uma amiga e tivemos tantos insights. A história é sobre um casal expatriado que decide comprar um apartamento no país que eles escolheram morar. A narrativa vai mostrando essa realidade das pessoas que estão desenraizadas, suas alegrias e tristezas em estarem longe do seu território geográfico e a necessidade de criar um novo território subjetivo para habitar. É um livro sobre a vida miúda. A escrita da autora turca é muito inventiva, a forma como ela nomeia os capítulos, o formato que escolhe para nos apresentar tudo e todos que orbitam no universo desse casal, os conflitos postos e os não postos, enfim, ela faz do gestual do cotidiano uma forma de pensarmos: como mesmo ocupamos os nossos dias?
Alinhavos
(aqui destacarei sempre a referência, ideia ou sentimento que se tornaram o fio condutor da costura)
E pensando na minha questão do mês: o que vem antes da página em branco? Vem o que somos, as experiências que nos permitimos viver, os sentimentos que tecemos, o olhar que faz poesia no próprio corpo, o caminho que criamos caminhando. Sempre que chegamos em uma página em branco, chegamos com muita bagagem. Pode virar um lembrete!
Costura
(aqui acontece a minha costura final do mês, mas isso não quer dizer a verdade final. Então, a partir da sua leitura, podemos transformar essa costura final em um ponto e com o seu ponto, continuar a costurar o tema. Fique à vontade para participar, é só me escrever)
A mensagem chegou no meu celular no fim de tarde, quando eu estava quase terminando o dia. Dia esse que foi bastante desafiador, pois estava iniciando um novo projeto de leitura, pesquisa e escrita e os começos podem ser bem intensos.
Não sabemos muito bem ainda onde estamos, qual a intensidade necessária que a pesquisa vai exigir, sem ter descoberto ainda o tom da escrita, e nem como essa relação entre a pessoa autora do projeto e eu irá se dar. Enfim, no momento inicial de uma relação - com uma pessoa, com uma pesquisa, com uma escrita, com uma leitura - tudo ainda está bastante incerto.
Ok, mas vamos voltar. Estava falando da mensagem que havia acabado de chegar. Era uma pessoa que tinha sido indicada por uma amiga querida e ela se apresentava e dizia com um certo pudor, ao mesmo tempo, uma certa angústia. “Preciso escrever, avançar no meu projeto, mas paralisei na página em branco. O que devo fazer diante dela?”
Confesso que a minha reação foi abrir um sorriso e pensar: "não sei, se a questão é fazer alguma coisa diante dela, talvez, só talvez, seja um trabalho de primeiro reconhecer.” Respondi a mensagem, perguntando se podíamos marcar uma conversa para nos conhecermos e para que ela me falasse um pouco mais sobre o que queria escrever nesta página que insistia em ficar em branco.
Marcado o encontro para dali a alguns dias, fui eu pensar e sentir esse espaço, chamado: página em branco. O que seria isso? Como eu lidava com ela? Eu tinha angústia? Quais os rituais que me acompanhavam para enfrentá-la? Será que a questão é enfrentar? Passei a me ocupar do espaço subjetivo que uma página em branco pode criar.
Voltei para a minha trajetória, pensei nos inúmeros cadernos que tenho desde a adolescência, como era escrever ali, o que eu encontrava nessa escrita-desabafo-alívio. Depois pensei quando estava trabalhando no meu mestrado a escrita-tensão-utilitária e o quanto a página em branco me angustiava e paralisava também.
E cheguei aos meus últimos cinco anos, quando criei a Como Leio e a escrita passou a ser praticamente diária e como a angústia não me acompanhou nesse processo. Acredito que a angústia desse projeto tenha sempre sido direcionada a outro lugar: como viabilizar esse trabalho com a linguagem, como fazer as pessoas perceberem o quanto podem aprender de si fazendo uma leitura. Definitivamente não estava na escrita, pois ela passou a ser contínua e fluida, o que não quer dizer, sem desafios, sem entraves, sem momentos de pausas… tudo isso faz parte, mas o fato é que nesses cinco anos a escrita aconteceu.
E como esse deslocamento aconteceu na minha escrita? Saindo dos diários secretos, passando para um texto mecânico e agora se transformando em uma escrita com traço, prosa e que pode ser compartilhada.
Acredito que esse deslocamento aconteceu porque eu, de alguma forma, elaborei no corpo a seguinte questão: o que vem antes da página em branco?
E a resposta é simples, mas ardilosa: eu, a minha existência, os meus gestos, minhas escolhas, meus erros, minha emoção, minhas memórias, meus desejos mais secretos e aqueles totalmente divulgados, o caminho que criei caminhando.
Eu passei a chegar na página em branco carregada de pulsão de vida, de desejo de descobrir, de investigar, de querer saber qual palavra eu escolho para dizer o que quero e preciso.
Entendi que para acompanhar uma pessoa no seu processo de leitura e escrita, a maior pesquisa em que precisamos nos debruçar é sobre quem ela é e como trazer tudo isso para o projeto. Que ela entenda que a página em branco não é o início de nada, que o publicar não é o início de nada, que soltar para o mundo um texto ou um livro, não será início de nada. Tudo isso são pequenas partes de um processo. E esse processo já começou muito antes da página em branco e continuará também depois dela.
Importante refletirmos sobre como é estar presente na própria vida a ponto de entender que diante de uma página em branco sempre existe algo para expressar. Existem gestos, olhares, cheiros, lembranças, sorrisos, caminhadas... No filme “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, ele nos mostra tudo aquilo que existe na vida miúda que vem antes da página em branco. A vida vivida que está além da espetacularização, está nos pequenos gestos, no cotidiano, nos momentos passados, nos desejos futuros, nas repetições que surgem, na forma singular com que você se movimenta na vida. O personagem principal tem uma vida em que cada gesto tem sentido, e a repetição de cada dia vem como uma mostra de uma vida que basta para ser vivida.
O que vem antes da página em branco?
A maneira como você ocupa seus dias… o que no fim, será, como você ocupa sua vida.