Esse mês tive uma experiência cultural que me fez pensar na linha do tempo de uma vida, de um caminho. O que conta? E, como se conta uma vida de fato vivida? Lembrei da frase no poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, em que ele fala: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi". Acredito que o que eu tive a chance de testemunhar faz frente a essa frase e apresenta a vida inteira que de fato foi.
Assisti a peça “Não me entrego, não!”, de Othon Bastos, no Sesc. Um monólogo em que acompanhamos a jornada de vida dele, desde o surgimento de sua vocação como ator, a sua formação, seus ganhos e perdas, seus desvios. E assim, olhamos de frente toda uma trajetória que já conta com 91 anos de vida e 73 anos de carreira.
“Em cena, Othon não está sozinho. A atriz Juliana Medella assume o papel de sua ‘memória', interagindo com ele e trazendo observações que enriquecem a narrativa. ‘A ideia de ter a minha memória em cena foi minha, achei que seria interessante ter uma espécie de Alexa em cena. Ela entra para fazer descrições', brinca Othon, em uma analogia contemporânea que arranca risos e reflexões".
Ver ele brincar em cena foi uma das coisas mais deliciosas de espiar. O encontro de todos os tempos atuando no corpo do ator!
E, me fez pensar: No fim, o que conta?
Recortes
(nesta seção sempre trarei alguns recortes que cruzaram o meu caminho ao longo do mês e que me ajudaram na costura final da newsletter )
Meus desacontecimentos - Eliane Brum
Tem acontecido algo muito interessante comigo nos últimos tempos. Vira e mexe, chega uma mensagem: “li isso e lembrei de você!” Geralmente sou tomada por um espanto encantador porque são coisas tão lindas e que me tocam profundamente. Li esse pequeno tesouro faz muitos anos, nem sei precisar exatamente em que ano, mas vira e mexe ele volta. E dessa vez foi por uma mensagem de uma amiga (Obrigada Simone! ❤️). Isso me tocou profundamente, e inclusive estou na torcida para que esse livro entre em um projeto logo mais, dedos cruzados! Vou deixar o trecho que recebi e que abre o livro:
“nossa vida é nossa
primeira ficção
COMO CONTADORA DE HISTÓRIAS reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se.
Desta vez, fiz um percurso de dentro para dentro. Me percorri. Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra. Recordações são fragmentos de tempo. Com elas costuramos um corpo de palavras que nos permite sustentar uma vida. Quem conhece as pessoas e as situações aqui contadas poderá rememorá-las por outros caminhos, a partir de suas próprias circunstâncias. Ao descrever aqueles que morreram, possivelmente confronto as reminiscências de outros. Os que ainda vivem talvez discordem do que neles adivinho porque enxergam a si mesmos de modo diverso.
Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas também sou a parteira.”
Um guia para se perder - Rebecca Solnit
É um livro engenhoso com nove ensaios em que Rebecca Solnit nos mostra a sua imensa capacidade de associar livremente. O livro poderia ser uma aula sobre associação livre e seu potencial criativo. Ela começa narrando uma cena para em seguida te contar sobre uma paisagem, emenda com o processo criativo de um artista plástico e, no fim, somos jogados no fio condutor do livro que é o ato de se perder. O formato do livro é genial porque faz você experimentar essa perdição no corpo. Sim, para quem não está muito acostumado a pensar em associação livre, pode parecer tudo muito solto e confuso e a leitura pode ser mais exigente. Mas, recomendo!
“Como se conta com o imprevisto? Parece ser a arte de reconhecer o papel do inesperado, de não perder o pé diante das surpresas, de colaborar com o acaso, reconhecer que existem mistérios essenciais no mundo e, portanto, que o cálculo, o planejamento e o controle têm limite. Contar com o imprevisto talvez seja exatamente a operação paradoxal que a vida exige de nós.”
A ordem do tempo - Carlo Rovelli
Esse livro é um farol para mim, sempre volto nele. O tema é o tempo, mas é apresentado por uma ótica em que não tenho nenhuma familiaridade (física, rsrs). E talvez seja por isso mesmo que ele me provoque tantos pensamentos, deslocamentos e tantas ideias. Então, sempre que penso na questão do tempo, Carlo Rovelli é uma referência para minhas reflexões.
“Nosso presente pulula de vestígios do passado. Somos histórias para nós mesmos. Relatos. Eu não sou esta massa instantânea de carne deitada no sofá que tecla a letra “a” no notebook; sou os meus pensamentos repletos de vestígios da frase que estou escrevendo, sou os carinhos da minha mãe, a doçura serena com que meu pai me educou, sou minhas viagens de adolescente, minhas leituras que se estratificaram no meu cérebro, meus amores, meus momentos de desespero, minhas amizades, as coisas que escrevi, que ouvi, os rostos que ficaram impressos em minha memória. Sou sobretudo aquele que há um minuto tomou uma xícara de chá. Aquele que há um instante escreveu a palavra “memória” no teclado do computador. Aquele que há um segundo imaginava esta frase que agora estou completando. Se tudo isso desaparecesse, eu ainda existiria? Eu sou este longo romance que é a minha vida.
É a memória que une os processos espalhados no tempo dos quais somos constituídos. Nesse sentido, existimos no tempo. Por isso sou o mesmo que era ontem. Compreender a nós mesmos significa refletir sobre o tempo. Mas compreender o tempo significa refletir sobre nós mesmos.”
Alinhavos
(aqui destacarei sempre a referência, ideia ou sentimento que se tornaram o fio condutor da costura)
A palavra contar me abriu um exercício muito interessante durante o mês de abril. Tomando dois de seus significados como forma, passei o mês fazendo listas e criando narrativas para elas ou pegando narrativas e criando listas. Chamo de exercício porque de fato você brinca com o que um formato pode te entregar de conteúdo e vice-versa. Se quiser experimentar esse exercício e quiser me mandar é só responder a newsletter!
Costura
(aqui acontece a minha costura final do mês, mas isso não quer dizer a verdade final. Então, a partir da sua leitura, podemos transformar essa costura final em um ponto e com o seu ponto, continuar a costurar o tema. Fique à vontade para participar, é só me escrever)
Hoje vou começar a costura do mês pelo seu fim. Contando para você o fim, antes mesmo que leia as reflexões. E estou fazendo isso de forma intencional depois de vários embates com o texto, inúmeras tentativas de fechamentos e até a elaboração de uma lista das minhas leituras mensais para usar como truque de metalinguagem. Mas não colou, pareceu que eu estava fugindo da questão, inventando artifício para finalizar a conversa. O que aconteceu foi que o texto não se deixou fechar, e não vou fingir que não percebi. Então, saiba que este será um texto sem final, mas que tem um começo e que pode vir a continuar ou não…
E sendo assim, o que seria uma lista infinita ou um enredo sem final? Lembrei de Sísifo, o trabalho árduo de rolar uma pedra até o topo da montanha para no fim ver ela rolando ao pé dessa mesma montanha novamente, novamente e novamente. Fiquei ficcionando: como seria a lista de Sísifo? Quantas pedras teria carregado durante a eternidade? Quantos passos precisaria dar a cada dia? Quantas horas contaria para terminar o seu trabalho? Ou melhor ainda, quantos minutos contaria para ver seu trabalho se desfazer? Mas, quando eu penso no enredo, sempre imagino: o que ele nos contaria? O que nos confessaria sobre a ira dos Deuses? Ou a respeito do seus afetos ao subir e descer essa montanha?
Como em Sísifo, percebi que no exercício de listas e enredos, eu entrei em um círculo de movimento: criava uma lista e transformava em enredo e logo depois pegava um enredo e transformava em uma lista, em um trabalho sem fim. E quando percebi que esse experimento não me daria uma conclusão, desisti de procurar um desfecho e fiquei reparando no meu padrão, o que eu contava (computar) nas listas e como contava (relatar) nos enredos.
Lembrei de cenas, lembranças e ausências e logo formulei uma lista para computar esses momentos para em seguida buscar um enredo para esse cálculo. Um enredo que me permitisse transformar essa conta em uma possibilidade de contar aquilo que vi, senti e que achei que fosse. Porque sim, sabemos que o trabalho da memória é pura edição, não se trata de se relacionar com os fatos apenas, mas com todo um universo que faz com que a memória criada seja apenas uma interpretação possível para o momento.
Mas, depois que estava com o enredo pronto, me via compelida a olhar para a lista para saber como agir, para fazer algo com aquilo que ficou deflagrado ali. É como se a lista me desse direção. Mas, essa direção não abarcava tudo que eu precisava e me via às voltas com o enredo em busca de profundidade.
E nesse trabalho infinito, penso na minha busca por formatos que dêem conta de me apontar uma direção para toda a profundidade que é pensar na condição humana. Será que ao final, saberemos olhar para o que conta? E como contar o nosso tempo, se ele não for linear? É possível editar nossas memórias sem a ansiedade do agora? E, como contar com o tempo?
Convite
Antes de me despedir, quero convidar você para o Clube de Leitura da Como Leio do livro “Outra Pele - como fui parar em Moçambique e nada saiu como o planejado”, com a presença da autora, Caroline D’essen. Será dia 04/06 às 18:30, de forma virtual. Basta de inscrever de forma gratuita aqui e pode convidar quem você acha que vai gostar do encontro!