Morei em uma nuvem
Novembro, 2024.
Morei por um dia inteiro em uma nuvem.
Sim, isso podia ser o relato de um sonho, mas foi bem real e vou te explicar. Tirei férias em novembro e o meu destino foi a região dos canyons, em Santa Catarina. O hotel escolhido fica bem no alto das montanhas e fomos em busca de silêncio e descanso. No primeiro dia em que acordamos, abrimos a janela, empolgados com a vista do canyon bem ali na nossa frente, mas o que víamos era uma névoa branca e pensamos: “Ah, que pena, o dia está nublado.” Mas, parando um pouco para contemplar, percebemos que não se tratava de um simples dia nublado e sim, de uma névoa densa, sem fim, sem contorno que nos deixava completamente imersos. Não era como se víssemos uma tela em branco na nossa frente… a gente estava dentro da tela em branco.
Chegando para tomar café da manhã, começamos a conversar com as pessoas do hotel e eles falaram: “não está nublado não, o céu está aberto na cidade, estamos no meio das nuvens, dá pra imaginar?".
Não, não tínhamos imaginado, tínhamos lido aquela brancura toda com as referências mais comuns: nublado, neblina, névoa… enfim, não acordamos e olhamos pela janela e imaginamos: “olha que interessante nos hospedamos em uma nuvem”. Passamos o dia encantados com essa referência nova que é passar o dia em uma nuvem. Isso nunca tinha me acontecido. Acho que o mais perto que havia chegado dessa sensação era voar de avião e atravessar as nuvens, quando você olha para a janela e tudo é nuvem. Mas, aqui, a sensação era outra, porque caminhávamos pelas nuvens, estávamos literalmente nas nuvens e não só atravessando as nuvens.
No outro dia acordamos e a primeira coisa que nos perguntamos foi: será que ainda estamos morando na nuvem? Abrimos a janela e estava lá, grandioso, o canyon, acompanhado do sol lindo, do céu azul e de pouquíssimas nuvens. Ficamos animados, até porque a intenção era fazer alguma trilha, mas por um segundo pensei que sentiria falta de estar na nuvem, aquela tela em branco, sem tantos estímulos. Logo escutamos de uma mulher que estava hospedada no hotel: “ainda bem que o céu abriu hoje, porque como iria tirar as fotos para postar?” E imaginei como ontem devia ter sido um dia ruim para ela, já que não existia a paisagem que ela veio fotografar. E será que ela imaginou o céu que existia sem que ela pudesse vê-lo?
Acho que estamos todos forjados pela busca das paisagens instagramáveis e esquecemos que as experiências que colecionamos não cabem naquele quadradinho. E que nessa lógica de excessos e de buscar as imagens perfeitas e pré-fabricadas de lugares, corpos e coisas, estamos esvaziando o lugar da experiência, do encontro com a nossa subjetividade: deixamos de buscar imagens internas que deem suporte para a vida vivida e que possam ecoar depois.
E eu voltei sabendo que, além de em alguns dias ficar com a cabeça nas nuvens, agora posso também morar nelas.
Aumentando o nosso repertório sobre nuvens (rs) vou deixar umas associações livres que me vieram enquanto escrevia esse pequeno texto sobre a minha experiência.
Maneiras de ser - Animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária, James Bridle
“Minha metáfora computacional favorita expressa bem isso: a Nuvem. Se, no começo, a Nuvem era um símbolo indistinto nos diagramas que os primeiros engenheiros eletrônicos usavam para sinalizar uma caixa-preta dentro de uma rede, um sistema ou processo que era remoto e insignificante, nas últimas décadas, ela foi crescendo até cobrir o planeta inteiro. Atualmente, ela envolve quase todos os aspectos da nossa vida digital. É onde conversamos, fazemos compras, realizamos operações bancárias e aprendemos; é onde guardamos nossas memórias, lemos as notícias e participamos da sociedade contemporânea em rede. Mas a metáfora também descreve de forma direta o aspecto mais saliente da Nuvem: sua incognoscibilidade. Seria possível fazer uma objeção, dizendo que a Nuvem, tendo sido criada pelo homem, é potencialmente algo que podemos conhecer; mas ninguém, nem o cientista da computação, nem o programador, nem o engenheiro da rede, nem o legislador do setor tecnológico, nem o técnico que instala o cabo, ninguém a conhece por inteiro de verdade. O maior arranjo de tecnologias que jamais construímos, a força computacional que está no centro de todas as vidas do planeta, é “nebulosa”—e acho que é por isso que o nome pegou. Em vez de evocar o controle tecnocrático, a Nuvem evoca o clima. Ao escolher seu nome, não estamos em busca de dominação, e sim de uma acomodação com forças maiores do que nós.
Insistir na qualidade nebulosa da nuvem, no seu verdadeiro peso, na sua fisicalidade e fome de recursos, deveria sempre nos lembrar que seu funcionamento impõe uma dívida para com o planeta. Quando falamos na Nuvem, deveríamos pensar também no consumo de recursos dos servidores, no dióxido de carbono, na extração de materiais, nos fluidos tóxicos de refrigeração e nas guerras travadas pelo acesso a minérios raros que são parte integrante de nossas fluentes experiências tecnológicas.”
Como os artistas veem o mundo, Will Gompertz
“As nuvens são como os corretores de imóveis: têm má fama. São sempre usadas como metáfora padrão para situações negativas. Se as coisas não parecem muito bem, então há nuvens no horizonte; se forem mais agourentas, estão armando uma tempestade. Não está conseguindo pensar direito? Deve haver alguma coisa nublando seu discernimento. Parece culpado de algo? Então está sob uma nuvem de suspeitas. Perca todos os seus dados digitais e a culpa é certamente da nuvem. A única coisa boa da nuvem é o seu contorno brilhante, mas isso não é a nuvem, é o sol cintilando atrás dela. O sol é o cara legal; a nuvem, um estorvo que só atrapalha.
(...)
Assim é a vida, ou pelo menos era o que eu pensava. Mas eis que então, num dia nublado, eu estava no Ashmolean Museum em Oxford (escapando ao tempo fechado que fazia lá fora) e me deparei com um esboço do pintor romântico inglês John Constable (1776-1837). Era uma paisagem pintada em papel de tamanho médio (48 × 59 centímetros), datada de 1822, e muito diferente de qualquer outra representação da natureza que eu já tinha visto. Não havia árvores, nem rios, nem campos, nem colinas. Na verdade, não havia nada de terra. Nem de mar. Apenas céu. Um céu inglês. Um céu nublado! Um céu denso e carregado com aquelas infames manchas amorfas contendo água e cristais de gelo. Um céu que já fora contemplado milhões de vezes antes, mas nunca observado e registrado com a percepção daquele filho de um moleiro abastado. As nuvens de Constable não eram agourentas nem sombrias, mas belas, voluptuosas e cheias de personalidade. Seu céu era habitado por formas ondulantes, alegres e descontraídas, como hippies num festival de música. Tive a impressão de estar sentado ao lado de um conhecido que sempre havia considerado um chato de galochas e descobrir de repente que era a melhor companhia na sala. Foi uma experiência estranha: ver algo tão familiar—um céu nublado—e ao mesmo tempo ver algo pela primeira vez—uma pintura sem nada além de um céu nublado. Desde aquele dia vejo o mundo de maneira diferente. As nuvens de Constable transformaram minha relação com os dias de tempo fechado: o que antes era sem graça se tornou maravilhoso. Agora olho um céu nublado não de mau humor, mas com curiosidade, para ver a exposição sempre mutante da natureza com suas ‘esculturas celestes’.”
Escrever é muito perigoso - ensaios e conferências, Olga Tokarczuk
“Já não é preciso escrever um diário de viagem, quando através das mídias sociais se pode tirar e enviar fotografias para o mundo inteiro, imediatamente e para qualquer pessoa. Não é preciso escrever uma carta, quando mais fácil é ligar. Para que ler romances volumosos, quando se pode mergulhar em uma série? Em vez de sair de casa para se divertir com amigos, é melhor jogar videogame. Ler uma autobiografia? Não faz sentido, já que acompanho a vida das celebridades no Instagram e sei tudo sobre elas. Gravo aulas em vez de tomar notas. O maior inimigo do texto já não é a imagem, como pensávamos no século xx, preocupados com o impacto do cinema e da televisão. É, na realidade, uma dimensão completamente diferente da experiência do mundo, que afeta diretamente os nossos sentidos.”https://pesquisa.prolivro.org.br/press-kit-retratos-da-leitura-no-brasil
“País perde quase 7 milhões de leitores em quatro anos, segundo a 6ª. edição da Retratos da Leitura no Brasil, única pesquisa nacional que avalia o comportamento leitor dos brasileiros; redução aparece em todas as classes, faixas etárias e escolaridade.”
Por último deixo aí acima o link com o resultado dessa pesquisa bem importante para refletirmos sobre o que estamos produzindo com essa falta de leitura: apenas pessoas capazes de reproduzir imagens pré-fabricadas e pouca capacidade de imaginar, sentir e pensar a respeito de si, do mundo e das nuvens.
Assim, convido você a ler comigo ao menos quatro livros em 2025. Que tal?
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